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MITOLOGIA INDIANA – INTRODUÇÃO 

Os mitos são narrativas, aceitas como verdadeiras em determinada cultura, que envolvem seres sobrenaturais – deuses, anjos, demônios, seres humanos com poderes sobrenaturais, fadas, duendes etc. Por outro lado, narrativas que envolvem apenas pessoas, animais e outros seres da natureza, mesmo se contiverem exageros, não são considerados mitos e sim lendas. 

Na história do pensamento indiano, surgiram em alguns momentos certas correntes materialistas, que negavam a existência de qualquer ser sobrenatural. Evidentemente, para seus seguidores, não existe uma mitologia. Porém, a corrente predominante na Índia, desde uma época muito antiga, é o Hinduísmo, que aceita a existência de seres sobrenaturais. Há outras tradições diferentes surgidas na Índia, como o Budismo e o Jainismo, que também possuem mitologias específicas – mas elas não serão abordadas aqui.

A cultura indiana sempre foi repleta de mitos envolvendo diversos tipos de seres sobrenaturais – principalmente os seres divinos, que são chamados de “devas” (se forem masculinos) e de “devīs” (se forem femininos). Há também demônios (asuras), ninfas, duendes e outros seres, porém sua importância é muito menor.

Nas obras indianas mais antigas que chegaram até nós – os Vedas – já encontramos uma quantidade imensa de seres divinos. Em sua maioria, eles estavam associados a fenômenos da natureza – por exemplo, ao fogo, ao vento, ao Sol, aos rios, etc. À primeira vista, pode parecer que a antiga religião indiana era politeísta, já que admitia uma multiplicidade de seres divinos – como a antiga religião grega, por exemplo. Porém, os especialistas não classificam essa religião como um politeísmo e sim como um tipo muito especial de pensamento religioso, que recebe o nome de “catenoteísmo”, que será explicado mais adiante.

A mitologia indiana mudou, com o passar do tempo. No período dos Vedas, os seres divinos mais importantes eram Indra, Soma e Agni – que são devas que praticamente não são mais cultuados na Índia, hoje em dia. Na atualidade, os seres divinos mais populares são Viṣṇu, Śiva, Śakti, Gaṇeśa; e algumas manifestações (avatāras) de Viṣṇu, como Kṛṣṇa e Rāma, ou formas da Śakti (a Poderosa), como Lakṣmī e Pārvatī. Nenhum desses seres divinos tinha grande importância no período dos Vedas; alguns nem eram citados nessas obras mais antigas.

Além dos devas e devīs, existe na tradição indiana um ser que ultrapassa todos eles: Brahman, o Ser Absoluto. Brahman não é um deva nem uma devī. Também não é um nome masculino nem feminino, é neutro. A importância de Brahman e sua relação com os seres divinos começa a aparecer no pensamento indiano alguns séculos antes da era cristã, nas obras chamadas Upaniṣads. 

A relação entre os seres humanos e os seres divinos, na tradição indiana, tem múltiplos aspectos. Por um lado, desde o período dos Vedas, existe a prática de culto, com recitação de hinos de louvor e pedidos sob a forma de preces; existem rituais e oferecimentos feitos para os devas e devīs; e existe a tentativa de se aproximar deles, de captá-los de um modo mais direto. Porém, no período mais antigo pode-se dizer que há um distância muito grande entre os seres divinos e as pessoas. Isso começa a mudar alguns séculos antes do início da era cristã. Surgem práticas devocionais, que consistem em uma relação mais próxima entre a pessoa e o ser sobrenatural. O antigo respeito ou temor pelos seres sobrenaturais continua a existir, mas além disso surge uma relação de amizade ou amor, que é bem diferente. Para cada pessoa, um determinado ser divino que é considerado superior aos outros (o/a governante do universo, Īśvara ou Īśvarī) passa a ser cultuado de um modo especial, procurando-se um encontro pessoal – que inclui a visão desse ser divino – e a comunicação direta com sua divindade específica (Iṣṭadevatā). Essa relação pessoal passa a ocupar um papel importantíssimo na vida da pessoa, levando a uma transformação espiritual, através do processo de Bhakti-Yoga (Yoga da devoção). 

Todos esses aspectos serão explicados com mais detalhe a seguir.

Não é possível aqui apresentar as características e mitos de todos os devas e devīs do Hinduísmo – e nem mesmo dos principais entre eles. O nosso objetivo, aqui, é outro: explicar alguns aspectos do pensamento indiano que tornarão mais significativo o estudo dessa tradição. 

 

DEVAS E DEVĪS

A palavra sânscrita “deva” significa um ser celeste, brilhante, luminoso, divino. Essa palavra “deva” costuma ser traduzida por “deus”, mas devemos tomar cuidado para não confundir os devas indianos com a ideia judaico-cristã de Deus. Os devas não são como o Deus bíblico, que é o criador do universo, é único e não há nada superior a ele. 

“Deva” é uma palavra masculina. O seu feminino é “devī”. Existe um grande número de devas e devīs, na mitologia indiana. No Hinduísmo são cantados e recitados hinos para essas divindades; são realizados rituais para elas; e são feitas preces e pedidos, como em outras religiões. 

As obras indianas mais antigas que conhecemos são os Vedas, que foram compostos aproximadamente 2.000 anos antes da era cristã (ou seja, 4.000 anos atrás). Os Vedas se referem a muitos devas e devīs, que geralmente estão associados a seres e fenômenos da natureza. Agni, por exemplo, é o deva (masculino) associado ao Fogo. Pṛthivī é uma devī (feminina) associada à Terra. Vāyu correspondia ao Vento, Uṣas à Aurora, Sūrya ao Sol, Sarasvatī a um poderoso rio, Candra à Lua... e assim por diante. 

Porém, os devas e devīs não são simples personificações da natureza. São seres conscientes que estão ocultos por trás daquilo que vemos. Sūrya, por exemplo, não é o próprio Sol, nem é a sua luz ou calor, é um ser invisível e consciente que está por trás daquilo que vemos. 

Apesar de serem masculinos ou femininos, esses seres divinos associados à natureza não eram considerados como semelhantes aos seres humanos e não eram representados por esculturas ou pinturas antropomórficas (com corpo humano). O culto aos antigos devas era realizado em contato com os poderes da natureza aos quais eles estavam associados; não havia templos, nem imagens. Para fazer um culto dedicado à Lua (Candra), a pessoa saía ao ar livre e cantava hinos ou fazia oferecimentos à própria Lua, e não a uma imagem dela dentro de um templo. 

Havia, no entanto, algumas poucas exceções. Por exemplo, Indra, que era um deva guerreiro, associado às tempestades e aos raios, era imaginado como semelhante ao um ser humano, uma pessoa lutadora, que combatia os inimigos montado sobre um elefante. 

Além disso, desde o período dos Vedas, havia devas e devīs mais abstratos como, por exemplo, Vāc, a devī associada à palavra ou à fala; Aditi, a infinita ou ilimitada; Skambha, o suporte de toda a realidade; e vários outros. 

Os devas principais, na época dos Vedas, eram Indra (o deva guerreiro), Soma (a uma planta da qual se extraía uma bebida sagrada – e também à própria bebida) e Agni (associado ao fogo). Um grande número de hinos do Ṛg-veda é dedicado a cada um deles. Esses três eram masculinos e, de fato, no período dos Vedas, as devīs ficavam em segundo plano, embora fossem importantes e respeitadas. 

Há um aspecto que precisa ser compreendido, para diferenciarmos o conceito indiano de deva do conceito ocidental de divindade: os devas não existem apenas fora do ser humano; eles podem ser encontrados também dentro de nós. 

 

“A face da verdade está recoberta com um disco dourado. / Descubra-a, ó Pūṣan, para que eu, que amo a verdade, possa vê-la. Ó Pūṣan, vidente único, ó controlador, ó Sol, filho de Prājāpati, espalhe seus raios e concentre sua luz radiante / para que eu possa contemplar sua forma mais adorável; aquilo que é aquela pessoa [puruṣa], isso eu sou.” (Īśa Upaniṣad 15-16; Śukla Yajurveda).

 

“O dia negro e o dia branco giram sobre si próprios, o espaço e o espaço, com sua habilidade. / Agni, pertencente a todos os homens [Vaiśvānara], nascendo, rechaçou as trevas pela sua luz, como um rei. [...] Eis aqui o primeiro hotṛ, contemple-o! Ele é a luz imortal nos mortais. / Ele nasceu e se instalou firmemente aqui, imortal, crescendo neste corpo. Luz que foi firmada para mostrar o caminho, mais rápida do que o pensamento. / Todos os devas, com uma só mente e intenção, se dirigem para a fonte una de sabedoria. Meus ouvidos se abrem para ouvir, minha visão contempla esta luz que brilha no meu coração. / Minha mente ultrapassa os limites do pensamento. O que poderia eu dizer, o que poderia pensar?” (Ṛg-Veda VI.9,1;4-6)

 

Ao longo dos séculos, alguns devas e devīs que eram populares foram perdendo a importância e foram substituídos por outros. No período mais recente (poucos séculos antes do início da era cristã) alguns textos começaram a mencionar três devas principais como os mais poderosos do universo: Brahmā, Viṣṇu e Śiva; mas essa triplicidade, chamada Trimūrti, não era mencionada nos textos mais antigos. Nos Vedas, não se fala sobre Brahmā, o deva criador; Viṣṇu aparece muito pouco; e Śiva era um ser assustador, que tinha outro nome: Rudra. Assim, devemos compreender que a tradição mitológica e religiosa indiana não é estática, ela foi se transformando com o passar do tempo.

 

OUTROS SERES

Além dos devas e das devīs, a mitologia indiana é povoada por muitos outros tipos de seres sobrenaturais. 

Os Asuras são seres poderosos da mitologia indiana. Geralmente a palavra é traduzida como “demônios”. Seu nome provém da palavra sânscrita “asu”, que significa força, vida ou poder. No Atharva-Veda aparece o feminino Asurī, que são seres que têm domínio sobre a vegetação e produzem medicamentos, assim como encantamentos. Nos Vedas, alguns dos devas eram chamados de asuras, por causa de seu poder; e a palavra também era utilizada para indicar pessoas poderosas, como reis; porém, em obras mais recentes, como os épicos e Purāṇas, a palavra é sempre aplicada aos inimigos dos devas, seres malignos, sem sabedoria. Os Asuras são dominados pelo egoísmo e pelos seus desejos. Algumas vezes, os seres divinos passam a ser designados como “suras” (o oposto de “asura”). 

Um dos mais importantes asuras do período dos Vedas é Vṛtra, “o obstrutor”, que impede as águas celestes de fluírem, produzindo a seca e a morte. Ele tinha a forma de uma serpente ou dragão. Foi morto por Indra, o deva guerreiro. 

O asura Mahiṣa, ou Mahiṣāsura, é o vilão de um mito envolvendo Durgā, a deusa guerreira. Esse poderoso asura havia vencido todos os devas masculinos, que recorrem então à Deusa pedindo sua ajuda. Ela combate então esse asura e muitos outros demônios, vencendo todos e matando o próprio Mahiṣāsura no décimo dia de batalha. 

No épico Rāmāyaṇa, o asura Rāvaṇa rapta Sītā, a esposa de Rāma, um avatāra de Viṣṇu. As lutas entre os dois formam o centro dessa obra. Rāvaṇa, segundo a mitologia, era o rei dos rākṣasas, um tipo de ser demoníaco inferior aos asuras. 

Os rākṣasas são descritos como seres que dominam a noite. São dotados de poderes mágicos e capazes de assumir várias formas, como a de seres humanos, cachorros e grandes aves. Eles se alimentam de carne humana e de alimentos em decomposição. Eles perturbam os rituais, violam túmulos, possuem unhas venenosas. As pessoas podem ser possuídas pelos rākṣasas. É curioso que, no Nepal, pelo contrário, os rākṣasas são considerados como seres benéficos, que protegem as casas. 

O gandharva é outro tipo de ser sobrenatural. Nos Vedas, a palavra aparece indicando um único ser que reside na atmosfera ou no céu e que é o guardião da bebida sagrada Soma. Na literatura posterior, os gandharvas aparecem como um grupo. O nome “gandharva” vem da palavra “gandha”, que significa aroma ou perfume. Assim, os gandharvas são seres cheirosos. Eles conhecem as plantas medicinais e são capazes de possuírem seres humanos, especialmente mulheres; e possuem um poder mágico sobre as jovens. Eles têm aspectos positivos e negativos. Na poesia épica, são descritos como músicos e cantores do mundo celeste do deva Indra. Suas esposas são as apsarās, que são ninfas de grande beleza, associadas às águas.  

As apsarās (aquelas que vivem nas águas) habitam tanto as águas celestes quanto as terrestres. Possuem semelhança com as ninfas da mitologia ocidental. São capazes de voar e são grandes dançarinas. As apsarās podem mudar sua aparência à vontade, aparecendo com forma humana, animal ou vegetal. Em algumas obras elas são descritas como residindo dentro das árvores sagradas, recebendo então o nome de vṛkṣaśāyikā ou vṛkṣakā. Em alguns mitos, elas seduzem ou são seduzidas por homens. São invocadas em rituais de fertilidade. São esposas de gandharvas. 

Os yakṣas são seres protetores das florestas, das montanhas, da terra e dos tesouros ocultos. São representados como duendes ou anões robustos e corpulentos. São servidores de Kubera, um deva associado às riquezas. Os yakṣas são geralmente benévolos, mas em alguns mitos são ameaçadores e malévolos. Os seres femininos correspondentes são as yakṣīs ou yakṣiṇīs, representadas como belíssimas jovens sedutoras. Muitas vezes suas esculturas as mostram segurando um ramo de uma árvore. 

Bhūtas são fantasmas, espíritos de pessoas que morreram e que não seguiram o caminho adequado, que é se dirigir para uma nova vida (renascimento) ou atingir a libertação espiritual, dissolvendo-se no Absoluto. São seres perturbados, inquietos, que não conseguem se desprender da Terra, de suas casas e parentes, seja por terem sofrido uma morte violenta, ou por não terem conseguido cumprir suas obrigações, ou porque seus descendentes não realizaram os rituais funerários adequados. Os bhūtas são considerados como seres negativos, que devem ser evitados. Não existem espíritos humanos positivos sem corpo, na tradição indiana. 

 

HINDUÍSMO

Ao longo da história do pensamento indiano houve momentos em que surgiram algumas correntes materialistas, que negavam a existência de qualquer ser sobrenatural. Porém, o que predominou sempre, na Índia, foi uma visão religiosa, que aceitava, respeitava e cultuava os devas e devīs. 

Essa tradição religiosa passou por várias fases. A mais antiga, que já mencionamos, é a dos Vedas. Em certa época difícil de identificar, o culto religioso na Índia passou a ser dominado e centralizado pela casta sacerdotal – os brāhmaṇas – que recitavam os hinos, faziam rituais para os devas e devīs e também estabeleceram normas que deviam reger toda a sociedade. Nesse período, a religião é chamada Brāhmaṇismo. 

Vários séculos antes do início da era cristã, houve diversas mudanças sociais no subcontinente indiano. As castas dos guerreiros (kṣatriyas) e dos comerciantes (vaiśyas) passaram a ter maior importância e poder; e a supremacia dos brāhmaṇas foi questionada. No século VI a.C. surgiram novas correntes religiosas, que se opunham à tradição védica e brāhmaṇica – como o Budismo e o Jainismo. Esses movimentos heterodoxos negavam a importância dos Vedas e dos rituais antigos. Isso teve grande impacto na tradição indiana, levando a uma transformação da visão religiosa antiga. Alguns séculos antes da era cristã, o Brāhmaṇismo havia desaparecido, surgindo a partir dele aquilo que chamamos de Hinduísmo – uma abordagem religiosa menos rígida, que continuava a aceitar os Vedas e os rituais antigos, mas que dava mais importância ao relacionamento religioso individual, do homem comum, do que a estrutura rígida anterior, em que nada podia ser feito sem a intermediação dos brāhmaṇas. 

Foi nessa fase de surgimento do Hinduísmo que os devas e devīs começaram a se tornar antropomórficos, surgindo imagens para representá-los. Śiva e Viṣṇu começam a adquirir grande importância, conforme documentado em obras desse período, como o Mahābhārata. Foi também nessa época que começaram a ser construídos templos para o culto religioso. 

Surgem práticas devocionais, que consistem em uma relação mais próxima entre a pessoa e o ser sobrenatural. O antigo respeito e temor pelos seres sobrenaturais continua a existir, mas além disso surge uma relação de amizade ou amor, que é bem diferente do que havia anteriormente.

No primeiro milênio da era cristã há o desenvolvimento do Tantra indiano e também a elaboração de textos chamados Purāṇas. O Tantra desenvolveu novos tipos de rituais, chamados pūjā, que foram integrados ao Hinduísmo. O culto religioso se transformou, com o surgimento de novos tipos de orações e mantras, bem como práticas devocionais e de meditação. 

Dentro do Hinduísmo foram se desenvolvendo correntes específicas em que algum deva ou devī se torna o mais importante de todos. A corrente Vaiṣṇava é aquela em que Viṣṇu é considerado como o ser divino superior a todos os outros. Na corrente Śaiva, Śiva tem o papel central. Na corrente Śākta, é a Śakti (“a Poderosa”, a Grande Deusa) que adquire predominância. Existe também um grande número de devotos de Gaṇeśa, o deva com cabeça de elefante; de Sūrya, o deva associado ao Sol; e de outros seres divinos. Algumas dessas correntes possuem subdivisões. 

Em cada linha devocional, o ser divino que é considerado como superior a todos os outros é denominado Īśvara (se for masculino) ou Īśvarī (se for feminino). Essa palavra significa governante ou dirigente. Assim, para os Vaiṣṇavas, Viṣṇu é Īśvara; para os Śaivas, Śiva é Īśvara. Ou seja: Īśvara não é o nome específico de um ser divino, é uma espécie de adjetivo, que descreve a proeminência de algum deles. 

O deva Viṣṇu tem várias diferentes manifestações, ou avatāras – que são suas encarnações divinas. Delas, as mais populares são Kṛṣṇa (que é um importante personagem do épico Mahābhārata) e Rāma (o personagem central da obra Rāmāyaṇa). Assim, os devotos de Kṛṣṇa ou de Rāma constituem linhas específicas da corrente Vaiṣṇava. 

No caso da corrente Śākta, também há subdivisões. Cada uma das devīs da mitologia indiana é considerada como uma manifestação da Grande Deusa e não como um ser divino independente. Alguns dos devotos da Śakti se conectam às formas bondosas da Deusa, como Pārvatī (a companheira de Śiva) ou Lakṣmī (uma devī associada à riqueza e prosperidade). Outros devotos cultuam as formas iradas e terríveis da Deusa, das quais a mais conhecida é Kālī. 

Assim, dentro do Hinduísmo, há uma grande variedade de correntes e linhas devocionais. Cada uma delas produziu obras específicas, que colocam seu deva ou devī acima de todos os outros.  

Aceitar um determinado ser divino como superior aos demais não significa negar ou desprezar os demais. Independentemente da linha devocional seguida, praticamente todos os hindus (ou seja, os seguidores do Hinduísmo) valorizam e respeitam muito Gaṇeśa, que é invocado no início de quase todos os rituais, para proteger e abrir os caminhos. 

 

BRAHMAN, O SER ABSOLUTO

Embora existam muitos devas e devīs na tradição indiana, o hinduísmo não é chamado de politeísmo, como a religião grega antiga. há peculiaridades muito importantes no pensamento religioso indiano. desde o período dos Vedas, todos os devas são considerados como formas ou manifestações de um ser único, que é muito superior a qualquer divindade separadamente. Esse ser único não tinha um nome, na época mais antiga – representada pelos Vedas. Algumas vezes ele era designado pela palavra “Um” ou “Uno”. Por exemplo:

 

“Eles o chamam de Indra, Mitra, Varuṇa, Agni, e ele é Garutmān, de nobres asas. Os sábios dão muitos nomes ao Uno, chamando-o de Agni, Yama, Mātariśvan.” (Ṛg-Veda I.164.46)

 

Cada um dos devas é uma manifestação ou aspecto do Ser supremo, desse Uno. Há muitos nomes, mas apenas uma realidade fundamental por trás de todos os seres divinos. Cada um deles é, na verdade, o Ser supremo na sua totalidade, e por isso engloba todos os outros devas. 

 

“Este é o seu título mais glorioso, ó sábio, que todas as divindades residem em Indra.” (Ṛg-Veda III.54.17)

 

“Você, Agni, é Indra, o herói dos heróis, e você é Viṣṇu, o adorável, que dá amplos passos; você é Brahmaṇaspati, aquele que conhece a sabedoria e que encontra as riquezas, você é o sustentáculo que cuida de nós com sabedoria. Você, Agni, é o rei Varuṇa, que sustenta a lei, você deve ser cultuado como Mitra, de feitos maravilhosos; você é Aryaman, o senhor dos heróis, que alegra a todos, você é o liberal Aṁśa nas assembleias, ó deva!” (Ṛg-Veda II.1,3-4)

 

Essa concepção religiosa recebeu um nome especial: catenoteísmo. A palavra “catenoteísmo”, criada por Max Müller em 1867, pode ser entendida como “uma divindade de cada vez”. Cada uma é exaltada em um momento, como a mais elevada. Há muitos devas, mas sua multiplicidade não significa que um deles limite ou diminua a importância dos outros. Cada um dos devas é a totalidade da realidade, vestida com diferentes máscaras.

No Hinduísmo, há muitos devas, e não um; mas há algo superior a todos os devas, que foi denominado Brahman nos textos védicos tardios e nas Upaniṣads. 

No contexto filosófico desenvolvido a partir do Atharva-Veda, Brahman é um ser espiritual eterno, auto-existente (svayambhu), que não tem forma (amūrta), o Absoluto, o Grandioso (mahat), o Supremo (parama), aquilo que está além de tudo o que conhecemos (para). Todos os devas e devīs são diferentes manifestações de uma Realidade única, Brahman. Todos eles são, de certa forma, equivalentes; e qualquer um deles pode ser considerado como o deva supremo, como a essência de todos os outros devas, ou como a representação desse Absoluto, como foi mencionado acima.

A palavra “Brahman” não tem tradução. Não significa deus. Brahman é uma palavra neutra (nem masculino, nem feminino). Há muitas divindades masculinas e femininas no Hinduísmo (devas e devīs). Brahman é um conceito totalmente diferente. Brahman é único, os devas e devīs são muitos. Brahman (não confundir com Brahmā) não é representado por imagens, não tem templos dedicados a ele, ninguém faz orações ou pedidos a Brahman, nem são feitos rituais para Brahman. Os devas e devīs não são eternos, eles surgem no início de cada ciclo do universo e desaparecem no final de cada um desses ciclos. Brahman não surge nem desaparece, é a única realidade permanente. Brahman não é um deus criador, mas tudo surge a partir de Brahman, no início de cada ciclo do universo. Os próprios devas surgem a partir de Brahman. 

Brahman não é visível, mas está presente em todas as coisas que vemos. Brahman é uma Realidade que não pode ser atingida pelo pensamento, não pode ser definida conceitualmente. No Vedānta, Brahman é descrito como sendo realidade, consciência e beatitude (sat, cit, ānanda). O conceito de Brahman é bastante difícil de ser captado. Além disso, como Brahman não é uma divindade, não pode haver culto a Brahman – o Absoluto, o Ser incompreensível. 

Uma ideia importante que aparece nas antigas Upaniṣads é a conexão entre as pessoas e a divindade. Cada ser vivo (jīva) é diferente de todos os outros; porém, a essência mais fundamental de todos os seres vivos (e de todas as pessoas) é idêntica. Ela é chamada de ātman – uma palavra que podemos traduzir por “Eu”. O ātman não é individual, é igual para todos os seres humanos. A essência permanente distintiva de cada ser vivo é sua individualidade, ahaṅkāra, que é uma “camada” ou “envoltório” mais externo que o ātman. Não são apenas as pessoas que possuem ātman. Todos os animais, as plantas, as pedras, o chão, o céu... todos os seres vivos ou inanimados também possuem essa mesma essência, o ātman, que é igual em todos os seres. Existe apenas um ātman, e não uma diversidade deles; e as Upaniṣads ensinam que o ātman é o próprio Brahman – ou seja, a natureza mais profunda de cada pessoa, de cada ser vivo, é o mesmo Absoluto que é também a essência fundamental de toda realidade. 

 

“Aquele que é Aquilo no homem, e aquele que é Aquilo no Sol, ambos são um só.” (Taittirīya-Upaniṣad III.10.4) 

 

Nas Upaniṣads, a palavra “aquilo” (tad, em sânscrito) é utilizada para indicar Brahman. Assim, mergulhando no nível mais profundo de si mesma, uma pessoa pode atingir a Realidade última, pois o ātman é Brahman.

 

ĪŚVARA E IṢṬADEVATĀ

Brahman é o Ser Absoluto, é a meta mais importante na busca espiritual mas é, ao mesmo tempo, difícil de ser atingido diretamente, pois parece estar muito distante de nós. Os devas e devīs, principalmente quando adquiriram um caráter antropomórfico, são mais acessíveis. O culto e a devoção a um desses seres divinos pode servir como uma porta para atingir Brahman; porém, pode também ser uma barreira para isso. Vamos explicar essa relação.

Existem vários níveis ou camadas em cada ser do universo. O Sol é um astro luminoso, visível, que está no céu. Sūrya é um deva associado ao Sol, porém é invisível, está oculto dentro dele, por assim dizer. Sūrya é um nível mais interno do que o Sol físico. Porém, Sūrya – como todos os devas e devīs – tem uma essência mais interna, que é Brahman. Através de Sūrya – como também através de qualquer deva ou devī – podemos atingir o Ser Absoluto. Porém, se não soubermos penetrar até essa essência mais profunda, ficaremos presos em um nível mais superficial. Sūrya pode ser uma porta para o Absoluto; mas pode também ser uma barreira que nos impede de chegar ao Absoluto, se dermos uma importância exagerada a esse deva.

Já mencionamos que, em cada corrente devocional, existe um deva ou devī que é considerado superior a todos os outros, o Soberano (ou Soberana), que é o/a Governante do universo: Īśvara ou Īśvarī. Para um Śaiva, devoto de Śiva, este deva é supremo, é o Governante (Īśvara), é o Grande Deva (mahādeva), é o Deva dos Devas (devadeva). Mas um Śaiva pode se fixar no próprio Śiva, como deva individual, cultuando-o como o ser divino superior; ou pode transcender a individualidade de Śiva e considerá-lo como o próprio Absoluto, como Brahman. Neste segundo caso, o devoto pode ir muito mais longe, sob o ponto de vista espiritual. O mesmo ocorre em qualquer outra corrente devocional. 

Na cultura hindu, é comum que uma criança seja influenciada pelos seus pais e aceite como supremo o mesmo deva ou devī que eles aceitam. Um filho ou uma filha de um casal Vaiṣṇava quase sempre aceitará Viṣṇu como sendo Īśvara e fará orações e rituais voltados para esse deva. No entanto, pode ser que essa não seja a melhor escolha para aquela pessoa, sob o ponto de vista espiritual. Pode ser que ela não consiga avançar em sua caminhada, se mantiver a escolha de seus pais. Pode precisar encontrar a sua própria divindade – sua Iṣṭadevatā. 

A palavra “Iṣṭadevatā” é traduzida às vezes como “divindade escolhida”, ou “divindade favorita”. Essas traduções sugerem que cada pessoa escolhe o deva ou devī por quem sente mais afinidade ou simpatia. No entanto, na tradição indiana, costuma-se dizer que é o ser divino que escolhe o devoto – e não o contrário. Ou seja: uma pessoa que queira realmente saber quem é sua divindade pessoal ou Iṣṭadevatā não deve fazer uma escolha arbitrária nem superficial. Precisa descobrir quem é esse deva ou devī que vai ser o centro de sua busca espiritual. Existem técnicas especiais de meditação para fazer essa descoberta.

Uma vez que a pessoa sabe quem é sua divindade pessoal, deve então procurar estabelecer uma forte conexão com ela, através de práticas devocionais – estudar seus mitos, suas características, aprender mantras e hinos de louvor, realizar rituais (pūjā) para esse ser divino, oferecer-lhe frutos, flores e outros presentes, fazer práticas de meditação nas quais vê esse ser divino. Surge uma conexão de natureza amorosa, que vai se aprofundando. E, à medida que a pessoa se envolve e dedica a esse ser divino, ela começa também a receber orientação e dádivas. Quem estabeleceu uma comunicação com Īśvara (ou Īśvarī) não precisa de um guru humano, pois pode receber orientação diretamente do ser divino supremo.

 

FONTES INDIANAS SOBRE MITOLOGIA

Há muitos livros ocidentais recentes sobre mitologia hindu. De onde eles tiraram suas informações? Existem vários tipos de obras indianas antigas onde elas podem ser encontradas.

Os Vedas constituem a mais antiga tradição indiana que chegou até nós. Eles mencionam grande número de devas e devīs, bem como outros seres. Mas não contêm descrições claras ou sistemáticas de mitologia – apenas citam esses seres divinos, como se eles já fossem conhecidos. Pode ter existido uma tradição mais antiga do que a dos Vedas, que não foi preservada, que descrevia esses seres e seus mitos.

Há obras chamadas Brāhmaṇas – os manuais dos sacerdotes – que foram compostas poucos séculos depois dos hinos dos Vedas e que preservaram uma boa quantidade de informações sobre rituais, filosofia e mitologia. Podem ser consideradas as obras indianas mais antigas conhecidas que descrevem de forma clara diversos mitos fundamentais. 

Há outras obras antigas, da tradição védica, como os Āraṇyakas e as Upaniṣads, que contêm relatos mitológicos, embora esse não seja o tema principal delas. Em diversas Upaniṣads anteriores à era cristã aparecem importantes menções de Viṣṇu e Śiva como seres supremos (Īśvara). 

Alguns séculos antes e depois do início da era cristã, as principais fontes mitológicas são os poemas épicos, chamados em sânscrito Itihāsa (“assim aconteceu”): Mahābhārata e Rāmāyaṇa. Na época em que foram compostos, a mitologia indiana já havia se transformado muito. Quase todos os devas e devīs do período dos Vedas já haviam perdido sua importância ou mudado suas características. Algumas devīs começam a ter maior proeminência; e Viṣṇu e Śiva estão entre os mais importantes devas. 

A mitologia hindu se expandiu depois, no primeiro milênio da era cristã, com as obras denominadas Purāṇas. Nelas encontramos informações muito detalhadas sobre todos os devas e devīs que são cultuados até hoje, na Índia. Os aspectos devocionais são muito enfatizados nessas obras. Algumas delas tratam especialmente sobre Viṣṇu, Śiva, Devī, Gaṇeśa, Sūrya. Os Purāṇas e os Tantras (que também começam a ser compostos aproximadamente na mesma época) apresentam os rituais associados a cada divindade, seus mantras, descrevem suas imagens e também aprofundam os aspectos filosóficos do pensamento indiano. 

Mitologia
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Fontes indianas sobre mitologia
Devas e Devis
Brahman
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